John Steinbeck, que eu saiba, nunca foi ciclista ou atleta. Ficou famoso como escritor, especialmente pelo clássico Of Mice and Men (algo como Sobre Ratos e Homens). Li o livro alguns anos atrás mais por curiosidade que interesse genuíno, e embora tenha ido até o fim não gostei a ponto de ler novamente. Mas hoje cedo, depois de chegar do pedal matutino, verificar o estado dos meus dedos dos pés e ponderar sobre o porquê de certas coisas, não pude deixar de lembrar de John, seus ratos e seus homens.
Talvez, me permiti divagar, se John Steinbeck tivesse sido ciclista e olhasse para a sola dos seus pés como eu fiz hoje de manhã, ele poderia ter escrito um livro um pouco diferente, com um título um pouco diferente. Ao invés de Of Mice and Men, que contrapõe a força e a fraqueza moral da natureza humana, ele poderia ter escrito Of Poodles and Men, explorando uma outra vertente não menos interessante da nossa espécie.
O Poodle é essencialmente um cão doméstico, e mesmo quem nunca teve um percebe isso na hora ao olhar para ele. Fica difícil imaginar um Poodle Retriever mergulhando em um lago gelado, um Poodle Shepherd comandando o rebanho, ou ainda um Poodle Husky passeando pelo gelo. Mesmo assim, uma coisa ninguém tira do Poodle: ele é tão descendente do Canis Lupus como o Pastor Alemão, o Golden Retriever e o Husky Siberiano.
O que tornou cada um desses cães aquilo que é hoje - pequeno ou grande, forte ou frágil, com pelo ou sem pelo, manso ou feroz - foi um processo adaptativo às condições ambientais. Assim, de maneira simplificada porém verdadeira, o Poodle é um lobo que foi convertido ao ambiente doméstico. Perdeu as presas, ficou menor, menos selvagem. Trocou a vida ao ar livre pela vida ao ar condicionado, a toca pelo apartamento, a carne crua pela carne enlatada, o banho de chuva pelo banho e tosa, e ao invés de afiar as unhas trotando pelas pedras vai ao veterinário (ou à manicure) para cortá-las. Nessa troca, se ele sai ganhando ou perdendo, jamais saberemos. O que importa é que os Poodles sempre me pareceram, senão felizes, ao menos conformados.
Não é necessário usar muito a imaginação para perceber que a trajetória do Poodle é também a nossa trajetória. Fizemos as mesmas trocas, aceitamos os ganhos, convivemos com as perdas. Deixamos de ser Homens das Cavernas para virar, sim, Homens-Poodle. A diferença é que alguns são conformados, ou pelo menos anestesiados. Outros não.
Não sei o que pensam os conformados/anestesiados, e não invejo seus motivos - embora respeite sua opção. Quanto aos demais, bem, esses eu conheço um pouco melhor. Alguma coisa - vamos chamar de inconformismo - os arranca da cama nas horas mais impróprias, sob as temperaturas mais improváveis. Deixando seus abrigos, eles (re)encontram no céu aberto o seu templo, no vento seu mantra, num certo sofrimento sua redenção. São atletas, montanhistas, mergulhadores, exploradores - inconformados mansos, rebeldes amadores, ateus do sistema, fiéis do no pain, no gain. Para todos esses, o que mantém o sentido da vida do Poodle não vem da cama feita, do ar condicionado, da carne picada e esterelizada ou da voltinha pela quadra. Vem da busca diária da conexão com o Lobo.
Hoje, depois do treino matutino - duas horas e pouco comungando com o frio (muito), o vento (mais ainda), e as dores pequenas e grandes da minha redenção, pisei no chão e não senti nada. Todos os dedos dos dois pés estavam amortecidos, branquinhos. Olhei para aqueles dedos brancos e sorri, confiante de que não são sinais de estupidez, insanidade e muito menos tempo perdido. São as marcas diárias da minha religação (que não por acaso tem a ver com religião).
Por tudo isso, se Steinbeck fosse atleta e mesmo assim não escrevesse Of Poodles and Men, deixaria aberto um belo espaço para que ao menos alguma coisa fosse dita sobre os pés imaculados daqueles que se renderam, e os calos, bolhas e dedos brancos dos que continuam vivendo.
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